Era Tite na seleção: análise dos acertos e erros do ciclo que terminou em frustração

Após seis anos no comando da seleção brasileira, o ciclo de Adenor Leonardo Bacchi, o Tite, chegou ao fim com a eliminação nas quartas de final da Copa do Mundo de 2022 para a Croácia. O que inicialmente parecia uma escolha acertada para reconstruir a seleção após o trauma de 2014 terminou com mais frustração para o torcedor brasileiro. O técnico que chegou com a promessa de trazer organização, estabilidade e resultados deixou o cargo sem conquistar o principal objetivo: a sexta estrela. Mas afinal, o que deu errado na era Tite?

Do Resgate à Estagnação: Os Dois Ciclos Distintos

A passagem de Tite pela seleção brasileira pode ser claramente dividida em dois momentos: o ciclo 2016-2018 e o ciclo 2019-2022. Essa divisão é fundamental para entender onde o projeto descarrilou.

Primeiro Ciclo (2016-2018): O Resgate da Credibilidade

Quando assumiu em junho de 2016, Tite encontrou uma seleção:

  • Em sexto lugar nas Eliminatórias para a Copa de 2018
  • Desacreditada após o 7 a 1 e a eliminação precoce na Copa América Centenário
  • Com jogadores questionados pela imprensa e torcida
  • Sem identidade tática definida

Em poucos meses, o treinador conseguiu:

  • Implementar um sistema 4-1-4-1 sólido defensivamente
  • Classificar a seleção com antecedência para o Mundial
  • Recuperar a confiança da torcida e da imprensa
  • Valorizar jogadores como Paulinho e Renato Augusto
  • Estabelecer Neymar como líder técnico dentro de um coletivo funcional

O Brasil chegou à Copa da Rússia como um dos favoritos, com um sistema de jogo claro e jogadores confiantes. A eliminação para a Bélgica nas quartas de final, apesar de dolorosa, foi vista como um acidente de percurso em um trabalho promissor.

Segundo Ciclo (2019-2022): A Estagnação Tática

A decisão da CBF de manter Tite para mais um ciclo parecia lógica após o trabalho de reconstrução. No entanto, o que se viu foi uma estagnação preocupante:

  • O sistema 4-1-4-1 tornou-se previsível e menos eficiente
  • Adaptações táticas foram raras e pouco efetivas
  • Convocações cada vez mais questionáveis e baseadas em relações de confiança
  • A dependência de Neymar aumentou em vez de diminuir
  • Resultados abaixo do esperado em amistosos e Copa América

O título da Copa América de 2019 mascarou problemas que ficaram evidentes na eliminação para a Argentina na final da edição seguinte, em 2021, e que culminaram na queda para a Croácia no Qatar.

Erros Táticos: Da Solidez à Previsibilidade

Rigidez Sistêmica

Tite construiu sua carreira como um técnico que valoriza a organização defensiva e o equilíbrio entre setores. Essa abordagem funcionou perfeitamente no primeiro ciclo, mas revelou-se insuficiente quando os adversários se adaptaram:

  • O 4-1-4-1 implementado inicialmente foi pouco a pouco desvendado pelos adversários
  • Tentativas de variação para o 4-2-3-1 ou 4-4-2 não foram assimiladas com a mesma eficiência
  • Transições ofensivas tornaram-se lentas e previsíveis
  • A equipe mostrou dificuldade contra blocos baixos e compactos

Ausência de Plano B Efetivo

Na Copa do Qatar, essa limitação ficou evidente. Contra a Croácia, após abrir o placar na prorrogação, a seleção:

  • Não conseguiu controlar o jogo através da posse de bola
  • Mostrou fragilidade nas bolas paradas defensivas
  • Não soube administrar a vantagem conquistada
  • Falhou em implementar estratégias alternativas quando a Croácia igualou o placar

Como resumiu o ex-jogador Kaká: “Tite montou uma Ferrari, mas dirigiu como se fosse um Fusca.”

Uso Inadequado de Talentos Ofensivos

O Brasil chegou ao Qatar com um arsenal ofensivo invejável: Neymar, Vinicius Jr., Raphinha, Richarlison, Rodrygo, Antony, Gabriel Jesus. No entanto:

  • A configuração tática não aproveitava plenamente as características destes jogadores
  • Combinações ofensivas pareciam mais fruto de improvisações do que trabalho sistematizado
  • Vinicius Jr., astro do Real Madrid, só ganhou protagonismo após a lesão de Neymar
  • Jogadores como Rodrygo foram subutilizados em funções que limitavam seu potencial

Convocações Polêmicas: Lealdade Acima da Meritocracia

Um dos pontos mais criticados na era Tite foi sua tendência a priorizar jogadores de confiança em detrimento daqueles em melhor momento técnico.

Os “Homens de Confiança”

Alguns casos emblemáticos:

  • Fred: Mantido como titular apesar de atuações questionáveis na seleção
  • Daniel Alves: Convocado aos 39 anos, sem ritmo de jogo, enquanto laterais em melhor momento foram preteridos
  • Coutinho: Sustentado nas convocações mesmo após queda de rendimento no Barcelona e Bayern

Ausências Sentidas

Por outro lado, jogadores em grande fase foram ignorados ou subutilizados:

  • Andreas Pereira: Em excelente momento no Fulham, sequer foi considerado
  • Gabriel Barbosa: Artilheiro pelo Flamengo, raramente teve oportunidades
  • Raphael Veiga: Um dos melhores meias do futebol brasileiro, nunca convocado

A mais polêmica das ausências talvez tenha sido a de Renan Lodi, lateral do Atlético de Madrid, deixado de fora por não estar vacinado contra Covid-19 – decisão que dividiu opiniões, especialmente considerando que a FIFA não exigia vacinação para a competição.

A Dependência de Neymar: Uma Estratégia de Risco

O Dilema do Superastro

Talvez o maior erro estratégico de Tite tenha sido aprofundar a dependência de Neymar, em vez de reduzi-la ao longo dos anos:

  • O sistema ofensivo foi cada vez mais centralizado no camisa 10
  • A lesão de Neymar na fase de grupos do Mundial expôs a falta de alternativas criativas consistentes
  • O retorno apressado do jogador para o mata-mata afetou o equilíbrio da equipe
  • Jogadores como Paquetá e Vinicius Jr. tiveram que readaptar suas funções para acomodar Neymar

Estatísticas revelam que nos jogos sem Neymar durante o ciclo 2019-2022, a seleção teve desempenho notavelmente inferior, evidenciando que Tite não conseguiu construir um sistema que funcionasse independentemente de seu principal jogador.

O Paradoxo Tático

O mais irônico é que a equipe mostrou seu melhor futebol no Qatar justamente quando Neymar estava lesionado:

  • Vitória contra a Suíça com gol de Casemiro
  • Goleada sobre a Coreia do Sul no primeiro tempo, com Neymar de volta mas em uma equipe já ajustada sem ele

Isso sugere que uma distribuição mais equilibrada de responsabilidades poderia ter sido mais eficiente a longo prazo.

Problemas de Gestão e Comunicação

Comunicação Ineficiente

Tite sempre se orgulhou de sua capacidade de gestão de grupo, mas no segundo ciclo surgiram problemas nessa área:

  • Discurso cada vez mais hermético e defensivo em entrevistas
  • Dificuldade em explicar decisões técnicas controversas
  • Postura distante com a imprensa, criando ambiente de desconfiança
  • Mensagens confusas sobre a filosofia de jogo da equipe

Falta de Autocrítica

Após derrotas ou desempenhos ruins, o treinador raramente assumiu responsabilidade direta:

  • Explicações centradas em estatísticas favoráveis (posse, finalizações)
  • Ênfase em “circunstâncias do jogo” em vez de falhas estratégicas
  • Proteção excessiva a jogadores com performances abaixo do esperado

Preparação Mental: O Calcanhar de Aquiles

O Peso da História

Um aspecto frequentemente negligenciado na análise da era Tite é a preparação psicológica da equipe para momentos decisivos:

  • Contra a Bélgica em 2018, a seleção mostrou notável fragilidade após sofrer o gol contra
  • Diante da Argentina na final da Copa América 2021, a equipe pareceu tensa e sem recursos
  • Na eliminação para a Croácia, o colapso emocional após sofrer o empate foi evidente

A comissão técnica, que incluía um psicólogo, não conseguiu preparar adequadamente os jogadores para lidar com a pressão inerente à camisa amarela.

Escolhas em Momentos Cruciais

A disputa de pênaltis contra a Croácia exemplifica esse problema:

  • Neymar, melhor batedor, foi escalado como quinto cobrador e não chegou a bater
  • Jogadores com pouca experiência em cobranças foram selecionados
  • A preparação específica para esta situação pareceu insuficiente

Legado e Aprendizados

Apesar das críticas, a era Tite deixa lições importantes:

Pontos Positivos

  • Resgate da credibilidade da seleção após o 7 a 1
  • Implementação de um processo seletivo mais estruturado
  • Resultados expressivos nas Eliminatórias
  • Desenvolvimento de jogadores como Casemiro, Marquinhos e Alisson como líderes

Lições para o Futuro

  • A necessidade de renovação constante de ideias táticas
  • A importância de um sistema que não dependa excessivamente de um único jogador
  • O equilíbrio entre lealdade e meritocracia nas convocações
  • A preparação mental como fator decisivo em competições curtas

Um Projeto Incompleto

A era Tite termina como um projeto que começou promissor mas não se completou. O técnico que chegou para reconstruir conseguiu erguer estruturas sólidas, mas não colocou o teto da casa. Seu legado será sempre marcado pela dualidade: o resgate bem-sucedido no primeiro ciclo e a estagnação frustrante no segundo.

Para o pentacampeão mundial, que vive seu maior jejum de títulos mundiais desde o intervalo entre 1970 e 1994, fica a lição de que mesmo um trabalho estruturado pode fracassar quando falta capacidade de renovação e adaptação. O próximo treinador da seleção brasileira precisará encontrar o difícil equilíbrio entre respeitar a tradição do “jogo bonito” e implementar a disciplina tática que o futebol moderno exige.

Como disse o próprio Tite em sua despedida: “Ciclos se encerram”. Resta saber se o próximo ciclo da seleção assimilará os aprendizados deste que agora se fecha.

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