Futebol Sul-Americano Subvalorizado: As Razões do Desprezo aos Talentos Continentais

Os olheiros brasileiros raramente atravessam a fronteira em busca de talentos. Enquanto isso, centenas de jogadores brasileiros cruzam as divisas todos os anos para se tornarem ídolos nos países vizinhos. Constroem carreiras sólidas, conquistam títulos expressivos e, mesmo assim, permanecem invisíveis para os grandes clubes de sua terra natal. Este fenômeno revela uma contradição fundamental no futebol brasileiro: exaltamos nossa tradição continental, mas ignoramos sistematicamente o talento que floresce no quintal sul-americano.

A geografia do preconceito futebolístico

O Cerro Porteño acaba de conquistar o Campeonato Paraguaio com seis brasileiros no elenco. No Olimpia, seu maior rival, outros quatro atletas do Brasil ajudaram a equipe a chegar às semifinais da Libertadores no ano passado. Na Bolívia, no Peru e no Chile, a história se repete: jogadores que não encontraram espaço no saturado mercado brasileiro transformam-se em referências técnicas e líderes de equipe.

“Fui campeão três vezes no Paraguai e nunca recebi sequer uma sondagem de clubes da Série A brasileira”, desabafa Alejandro Silva, meio-campista que acumula passagens vitoriosas por Olimpia e Cerro Porteño. “Quando voltei ao Brasil para jogar na Série B, percebi que muitos dirigentes nem sabiam da minha trajetória internacional.”

Esta invisibilidade contrasta frontalmente com a supervalorização de jogadores medianos vindos da Europa. Um atleta que atua em divisões inferiores de Portugal ou da Espanha frequentemente desperta mais interesse no mercado brasileiro que um compatriota multicampeão na Argentina ou no Uruguai.

O caso emblemático de Derlis González

Poucos exemplos ilustram melhor este paradoxo que a trajetória de Derlis González. O atacante paraguaio brilhou no Benfica de Portugal, transferiu-se para o poderoso Dínamo de Kiev e defendeu a seleção paraguaia em Copas do Mundo. Quando retornou à América do Sul, porém, não despertou interesse dos grandes clubes brasileiros.

“Jogadores como Derlis seriam titulares em pelo menos 15 dos 20 clubes da Série A brasileira”, avalia Carlos Gamarra, ex-zagueiro da seleção paraguaia e do Corinthians. “Mas existe um filtro invisível que desvaloriza automaticamente quem atua em países como Paraguai, Bolívia ou Venezuela.”

Esta barreira invisível não se apoia em dados técnicos ou estatísticos. Pelo contrário, os números frequentemente demonstram que atletas destacados em ligas como a argentina ou a colombiana adaptam-se rapidamente ao futebol brasileiro quando recebem oportunidades.

Além das fronteiras: os brasileiros esquecidos

Se jogadores estrangeiros enfrentam resistência para atuar no Brasil após brilhar em países vizinhos, os brasileiros que seguem o mesmo caminho praticamente desaparecem do radar nacional.

Matías Alonso, volante revelado nas categorias de base do Flamengo, tornou-se ídolo do Nacional do Uruguai com três títulos nacionais consecutivos. Mesmo assim, quando decidiu retornar ao Brasil, apenas clubes da Série B demonstraram interesse em seu futebol.

“A sensação é que sua carreira zera quando você sai do eixo Brasil-Europa”, explica Alonso. “Cheguei a ser convocado para a seleção uruguaia sub-23 e, mesmo assim, no Brasil me tratavam como um atleta em início de carreira quando tentei retornar.”

O mesmo acontece com Fabrício Formiliano, zagueiro que acumula mais de 200 jogos pelo Peñarol do Uruguai. “No Brasil, dirigentes me perguntam se o nível do Uruguaio é muito inferior ao Brasileiro, ignorando que o Peñarol eliminou clubes brasileiros na Libertadores nos últimos anos”, conta o defensor.

Raízes históricas e econômicas do preconceito

Esta desvalorização tem raízes históricas e econômicas. A partir dos anos 1990, com a Lei Bosman e a abertura dos mercados europeus, o futebol brasileiro voltou-se prioritariamente para a Europa como referencial de qualidade. Simultaneamente, a crise econômica que atingiu diversos países sul-americanos enfraqueceu suas ligas nacionais.

Criou-se, assim, uma hierarquia artificial onde apenas Europa e Brasil produziriam talentos dignos de nota. Esta visão ignora deliberadamente as conquistas continentais de clubes argentinos, uruguaios e paraguaios nas últimas décadas.

“O Brasil desenvolveu um relacionamento colonial com o futebol europeu, enquanto adota postura imperialista com os vizinhos sul-americanos”, analisa Diego Moretti, sociólogo especializado em futebol da Universidade de Buenos Aires. “Este comportamento contradiz a própria identidade futebolística brasileira, historicamente construída em diálogo com Argentina, Uruguai e Paraguai.”

Mudanças no horizonte?

Alguns sinais recentes indicam possíveis mudanças neste cenário. O sucesso de jogadores como Artur, resgatado pelo Palmeiras após brilhar no Cerro Porteño, começa a abrir os olhos de dirigentes brasileiros para o talento disponível nos países vizinhos.

As próprias transmissões das competições sul-americanas, mais acessíveis através de plataformas digitais, contribuem para derrubar estereótipos sobre o nível técnico das ligas continentais.

“O futebol sul-americano está finalmente começando a ser visto como um ecossistema integrado, não como ilhas isoladas”, avalia Juan Sebastián Verón, ex-jogador argentino e atual dirigente do Estudiantes de La Plata. “Brasil e Argentina precisam liderar este processo de valorização mútua, ou continuaremos perdendo espaço no cenário global.”

Enquanto isso, nas arquibancadas do Defensores del Chaco, em Assunção, ou do Centenário, em Montevidéu, jogadores brasileiros continuam escrevendo histórias de superação e conquistas. Histórias que, por enquanto, raramente encontram eco em seu país de origem.

O futebol, como manifestação cultural, reflete valores e contradições sociais mais amplas. A desvalorização sistemática dos talentos sul-americanos expõe uma faceta pouco discutida do esporte bretão em terras brasileiras: nossa dificuldade em reconhecer qualidade além de nossas fronteiras, a menos que esta qualidade venha carimbada com aprovação europeia.

Para superar este paradoxo, talvez seja necessário um retorno às origens, quando o futebol sul-americano se desenvolveu como uma expressão autêntica de identidade continental, em constante diálogo cultural e técnico entre os países vizinhos. Um futebol que, longe de hierarquias artificiais, valorizava o talento onde quer que ele florescesse.

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