Filipe Luís e a formação emocional

O silêncio tomou conta do Maracanã por uma fração de segundo. A bola, impulsionada pelo pé esquerdo de Joshua, balançou as redes no minuto 85. Enquanto trinta e cinco mil pessoas explodiam em êxtase, Filipe Luís permaneceu imóvel à beira do campo, os olhos marejados fixos no jovem que corria em sua direção. O abraço entre eles transcendeu o momento esportivo — era o ápice de uma jornada iniciada cinco anos antes, quando um Filipe ainda jogador vislumbrou algo especial naquele menino franzino do sub-17.

A Profecia de Ninho do Urubu

“Ele tem algo diferente”, comentou Filipe aos 35 anos, após assistir a um treino da base em Ninho do Urubu. Na época, Joshua era apenas mais um entre dezenas de adolescentes sonhadores. Filipe, já planejando sua transição para a carreira de treinador, passou a dedicar tempo extra ao jovem atacante.

“Filipe aparecia nos treinos da base quando ninguém esperava”, revela Marcos Braz, vice-presidente de futebol do Flamengo. “Enquanto outros jogadores do profissional aproveitavam folgas, ele estava lá, observando, aconselhando. A conexão com Joshua começou muito antes de qualquer um imaginar.”

A relação se fortaleceu gradualmente. Durante seus últimos dois anos como jogador, Filipe tornou-se mentor informal de Joshua. Mensagens de texto após os jogos da base, convites para assistir vídeos táticos, conselhos sobre nutrição. Um vínculo que ultrapassava o profissional e alcançava o paternal.

Da Transição à Ascensão

Quando Filipe Luís assumiu o comando técnico do Flamengo em janeiro de 2024, após um breve período nas categorias de base, uma de suas primeiras decisões foi promover Joshua ao elenco principal. A escolha gerou ceticismo entre diretores e torcedores.

“Muitos questionaram se não era precipitado, se não estava privilegiando um jogador com quem tinha afinidade”, conta Diego Ribas, ex-companheiro de Filipe e atual coordenador técnico do clube. “Mas quem acompanhava os bastidores sabia que aquela decisão não era emocional — era técnica, baseada em anos de observação minuciosa.”

Os primeiros meses foram de adaptação. Joshua oscilava entre lampejos de genialidade e erros típicos da juventude. A imprensa questionava, a torcida impacientava-se. Filipe, entretanto, manteve-se inabalável em sua convicção.

“Nunca vi um treinador proteger tanto um jogador sem comprometer sua autoridade”, observa Everton Ribeiro, que retornou ao clube como assistente técnico. “Ele cobrava Joshua mais duramente que qualquer outro, justamente porque conhecia seu potencial. Mas fazia isso longe dos holofotes, preservando a confiança do garoto.”

O Momento da Transformação

O ponto de inflexão ocorreu durante um treino fechado em abril. Após uma série de finalizações erradas, Joshua explodiu em frustração, atirando a chuteira contra o alambrado. Filipe interrompeu o treino e, em vez da bronca esperada, conduziu o jovem para uma conversa reservada que durou quase uma hora.

“Naquele dia, vi Filipe mostrar ao Joshua vídeos de seus próprios erros quando tinha 20 anos”, revela o preparador físico Márcio Tannure. “Ele desmistificou a perfeição, humanizou o processo de desenvolvimento. Depois daquela conversa, vimos outro jogador em campo.”

As semanas seguintes marcaram a ascensão meteórica do jovem atacante. Cinco gols em seis jogos, incluindo aquele decisivo no clássico contra o Fluminense, selaram sua consagração. A corrida em direção a Filipe Luís após o gol virou símbolo da nova era rubro-negra — uma era em que as conexões humanas transformam potencial em realidade.

O Fenômeno Além de Joshua

Filipe Luís não revoluciona apenas a trajetória de Joshua. Outros jovens como Miguel e Matheus França encontraram sob seu comando o ambiente ideal para florescer. O técnico implementou o que chama de “desenvolvimento personalizado” — cada jovem da base recebe um programa específico de evolução, com metas técnicas, táticas e emocionais.

“Filipe conhece cada um deles desde o início. Sabe quem precisa de cobrança dura e quem rende mais com incentivo”, explica Rodolfo Landim, presidente do clube. “É um conhecimento impossível para um técnico que acaba de chegar. Essa é a vantagem competitiva que estamos construindo.”

Ecos do Passado: Lições de Outros Momentos

A história de Filipe Luís e Joshua não é inédita no futebol mundial, embora seja rara. Pep Guardiola e Busquets viveram algo semelhante no Barcelona. O técnico catalão, que havia jogado nos últimos anos de carreira com um jovem Busquets no Barcelona B, apostou no meio-campista quando assumiu o time principal.

“Guardiola me entendia como jogador porque me viu formar. Conhecia minhas limitações e meus pontos fortes antes mesmo que eu os descobrisse”, revelou Busquets anos depois. “Isso cria uma confiança impossível de replicar em relacionamentos técnico-jogador convencionais.”

Outra história menos conhecida vem do Ajax. Ronald Koeman, ainda como jogador veterano, identificou o talento de um jovem zagueiro chamado Frank de Boer. Anos depois, como técnico do Ajax, Koeman não apenas promoveu De Boer ao time titular, mas o transformou em capitão e referência técnica.

“Koeman me ensinou a ver o jogo quando eu ainda formava minha personalidade como jogador”, declarou De Boer. “Quando ele se tornou meu treinador, já existia uma linguagem comum entre nós. Ele sabia exatamente como me motivar.”

A Redefinição da Identidade Rubro-Negra

Durante anos, o Flamengo viveu o paradoxo de ser um clube com excelente categoria de base, mas que raramente aproveitava seus talentos no time principal. A chegada de Filipe Luís ao comando técnico alterou essa dinâmica.

“Estamos testemunhando uma mudança cultural”, afirma Zico, maior ídolo da história do clube. “O Flamengo sempre teve jogadores talentosos na base, mas faltava alguém que os conhecesse profundamente e tivesse coragem para apostas sustentadas, não apenas oportunidades isoladas.”

Dados internos do clube revelam que o tempo de jogo concedido a atletas formados na base aumentou 218% desde a chegada de Filipe ao comando. Mais significativo, o índice de aproveitamento desses jogadores melhorou consideravelmente.

“Antes, um jovem ganhava uma chance e, se não correspondesse imediatamente, voltava ao banco. Era uma pressão insustentável”, analisa Carlos Eduardo Mansur, jornalista especializado em formação de atletas. “Filipe criou um ambiente onde erros fazem parte do processo, onde há tempo para adaptação. Isso muda completamente a psicologia do desenvolvimento.”

O Segredo das Conversas Noturnas

Poucos sabem, mas Filipe mantém um ritual que explica parte de seu sucesso com os jovens atletas. Duas vezes por mês, reúne-se individualmente com cada jogador da base integrado ao profissional para jantares fora do ambiente do clube.

“Nesses encontros, futebol é assunto proibido na primeira hora”, conta Joshua em rara entrevista. “Falamos sobre família, sonhos pessoais, medos, músicas, filmes. Ele quer nos conhecer como pessoas antes de nos orientar como atletas.”

Esta abordagem humanizada rompe com a tradição autoritária do futebol brasileiro. Filipe está construindo um modelo onde o entendimento emocional do jogador precede as exigências técnicas e táticas.

“Quando o gol saiu naquele clássico, não pensei em comemorar com a torcida. Corri para o Filipe porque ele me conhecia por inteiro, muito além do futebol”, confessa Joshua. “Ele sabia das noites que chorei depois de lesões, das dúvidas que tive, do medo de não ser bom o suficiente. Aquele abraço celebrava uma jornada que só nós dois conhecíamos completamente.”

O Futuro do Modelo Filipe Luís

O sucesso inicial deste modelo levanta questões sobre sua sustentabilidade e replicabilidade. O Flamengo já estrutura um programa onde ex-jogadores são incorporados à comissão técnica das categorias de base, criando uma ponte consistente até o profissional.

“O que Filipe está construindo não é apenas um time vencedor, mas um legado metodológico”, destaca Alexandre Gama, coordenador das categorias de base. “Em cinco anos, queremos que esta transição entre base e profissional seja tão natural quanto respirar. Que a identidade do clube esteja impregnada em cada atleta que sobe.”

A experiência do Flamengo começa a chamar atenção internacional. Clubes europeus têm enviado observadores para entender o modelo implementado por Filipe Luís, especialmente a integração emocional entre formação e alto rendimento.

O caminho escolhido por Filipe não é o mais fácil. Seria mais simples e menos arriscado apostar em jogadores prontos, adquiridos a peso de ouro no mercado. Porém, como ele mesmo declarou após a vitória histórica no clássico: “Quando você forma um jogador, não está apenas desenvolvendo um atleta — está construindo um vínculo que nenhum contrato milionário pode comprar. É sobre pertencimento, é sobre família.”

No futebol contemporâneo, onde relacionamentos são frequentemente subordinados a interesses comerciais imediatos, Filipe Luís e Joshua oferecem uma narrativa alternativa. Uma história onde o tempo investido em conexões humanas transforma-se na mais valiosa das moedas: confiança recíproca, crescimento mútuo e uma identidade clubística que transcende gerações.

O abraço emocionado após aquele gol no Maracanã foi apenas o começo. A verdadeira revolução acontece diariamente, longe das câmeras, quando um treinador escolhe ver além do atleta e enxerga o ser humano em formação. E essa, talvez, seja a maior vitória que o Flamengo poderia conquistar.

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