O futebol brasileiro vive um paradoxo intrigante: enquanto exporta talentos para os maiores clubes do mundo, importa cada vez mais técnicos estrangeiros para comandar seus times. Esta tendência, que começou como exceção, transformou-se em regra nos últimos anos e levanta questionamentos sobre a formação e a competitividade dos treinadores nacionais. Botafogo, Palmeiras e Fortaleza, os três primeiros colocados do atual Campeonato Brasileiro, são comandados por estrangeiros – um sintoma revelador desta crise.
A queda dos ídolos nacionais
A trajetória recente de renomados técnicos brasileiros ilustra bem o momento de turbulência. Fernando Diniz, aclamado pelo título da Libertadores com o Fluminense em 2023, viu seu prestígio desmoronar após uma sequência de resultados negativos que culminaram em sua demissão. Assumiu o Cruzeiro e já enfrenta críticas por desempenhos abaixo do esperado. Sua passagem pela Seleção Brasileira, como interino, ficou marcada por experimentos táticos que não se traduziram em resultados positivos nas Eliminatórias.
Tite, por sua vez, deixou o comando da Seleção após a eliminação nas quartas de final da Copa do Mundo de 2022 e teve uma experiência desastrosa no Flamengo. Apesar do currículo vitorioso, inclusive com um título da Libertadores pelo Corinthians, o treinador não conseguiu implementar suas ideias no clube carioca e foi demitido depois de resultados e atuações que frustraram a torcida rubro-negra.
Dorival Júnior, atual comandante da Seleção Brasileira, tenta reverter essa tendência. No entanto, mesmo com conquistas recentes por Flamengo e São Paulo, o treinador enfrenta dificuldades para extrair o melhor de um elenco recheado de estrelas. O Brasil, que possui um dos melhores ataques do mundo com Vinícius Júnior, Rodrygo e Raphinha, além de promessas como Endrick e Estevão, não tem apresentado o futebol envolvente que seu talento individual sugere.
A ascensão dos estrangeiros e suas filosofias
Em contrapartida à crise dos técnicos brasileiros, treinadores estrangeiros vêm conquistando espaço e títulos no futebol nacional. Abel Ferreira chegou ao Palmeiras em 2020 e revolucionou o clube alviverde, conquistando duas Libertadores, dois Campeonatos Brasileiros e outros troféus importantes. O português implementou um sistema tático versátil e estabeleceu uma mentalidade competitiva que transformou o Palmeiras em uma das forças dominantes do continente.
Juan Pablo Vojvoda representa outro caso de sucesso. O argentino assumiu o Fortaleza em 2021 e conduziu o clube cearense a patamares inéditos. Sob seu comando, o Leão do Pici disputou a Libertadores pela primeira vez em sua história e consolidou-se como força nacional, ocupando as primeiras posições do Campeonato Brasileiro com um orçamento consideravelmente menor que seus concorrentes.
Mais recentemente, Artur Jorge chegou ao Botafogo e rapidamente adaptou-se ao futebol brasileiro. O português manteve o alvinegro na liderança do campeonato e nas semifinais da Libertadores, mostrando capacidade de gestão de grupo e implementação de ideias táticas em um curto espaço de tempo.
O que esses treinadores estrangeiros têm em comum? Metodologias de trabalho atualizadas, abordagens táticas versáteis e capacidade de implementar culturas de trabalho profissionais que maximizam o desempenho dos atletas. Eles chegam ao Brasil com experiências diversas e visões de jogo que se diferenciam do tradicionalismo que ainda permeia grande parte do futebol nacional.
As raízes da crise e a falta de atualização
A estagnação dos técnicos brasileiros não aconteceu da noite para o dia. Enquanto o futebol europeu passava por uma revolução tática nas últimas duas décadas, com Guardiola e Klopp redefinindo paradigmas, muitos treinadores nacionais permaneceram apegados a conceitos que já não respondem às demandas do futebol moderno.
A formação de treinadores no Brasil ainda carece de estrutura e atualização. Enquanto Portugal desenvolveu uma escola de técnicos com forte base acadêmica, produzindo nomes como José Mourinho e Rúben Amorim, o Brasil continua formando treinadores predominantemente através da experiência prática, sem a fundamentação teórica necessária para competir no alto nível.
“As mudanças no universo do futebol mundial nos últimos anos aceleraram também as transformações do trabalho dos treinadores. Modelos de jogo, como o toque de bola rápido e o jogo apoiado, à la Pep Guardiola, ficaram mais conhecidos e se tornaram referências para as definições técnicas e táticas dos times e seleções nacionais”, aponta análise recente sobre o tema.
Outro fator relevante é a resistência à inovação tecnológica e ao uso de dados. Enquanto treinadores europeus incorporaram a análise de desempenho e o uso de métricas avançadas em suas metodologias, muitos técnicos brasileiros ainda priorizam a intuição e a experiência em detrimento de abordagens mais científicas.
O reflexo na Seleção Brasileira
O momento crítico dos treinadores brasileiros reflete-se diretamente no desempenho da Seleção. A Canarinho, que sempre teve técnicos nacionais em sua história de conquistas, atravessa um jejum de mais de 20 anos sem levantar o troféu mundial e apresenta dificuldades nas Eliminatórias para a Copa de 2026.
Um aspecto curioso dessa crise é que jogadores que brilham em seus clubes europeus não conseguem reproduzir o mesmo desempenho com a amarelinha. Vinicius Júnior e Rodrygo, protagonistas no Real Madrid, enfrentam dificuldades para traduzir sua qualidade individual em contribuições decisivas para a Seleção.
“Mas jogadores que vêm conquistando título após título por seus clubes, sendo decisivos, como Rodrygo e Vini Júnior, não têm rendido da mesma forma na Seleção – o que coloca, mais uma vez, o problema técnico como uma possível razão”, ressalta o texto de apoio.
Esta disparidade entre o desempenho nos clubes e na Seleção sugere problemas estruturais na abordagem tática e na capacidade de criar um ambiente propício para que esses talentos floresçam. Enquanto técnicos estrangeiros conseguem extrair o melhor de jogadores brasileiros em seus clubes, os comandantes nacionais enfrentam barreiras para repetir esse sucesso no âmbito da Seleção.
O caminho para a renovação
Para reverter este cenário, o futebol brasileiro precisa investir em uma renovação estrutural na formação de seus treinadores. A criação de centros de excelência para o desenvolvimento de técnicos, com intercâmbio internacional e forte base teórica, pode ser um primeiro passo importante.
A abertura para novas ideias e metodologias também é essencial. A resistência à inovação, travestida de preservação da “essência do futebol brasileiro”, tem se mostrado contraproducente. O jogo evoluiu, e os treinadores precisam evoluir com ele.
Algumas instituições já começam a trabalhar nessa direção. Cursos de formação mais abrangentes, com disciplinas que vão além dos aspectos táticos e incluem gestão, psicologia esportiva e análise de dados, estão sendo desenvolvidos para preparar a próxima geração de técnicos brasileiros.
O paradoxo é que o Brasil continua produzindo jogadores de altíssimo nível, mas falha em desenvolver treinadores capazes de extrair o melhor deles. Enquanto não houver uma mudança fundamental na mentalidade e na formação dos técnicos nacionais, a dependência de nomes estrangeiros tende a aumentar, tanto nos clubes quanto, potencialmente, na Seleção Brasileira.
O dilema da identidade
A discussão sobre técnicos estrangeiros na Série A e possivelmente na Seleção levanta questões sobre a identidade do futebol brasileiro. O país do “jogo bonito” vê-se diante do dilema entre preservar suas características históricas e adaptar-se às exigências do futebol contemporâneo.
A tradição da escola de treinadores do Brasil, com nomes como Telê Santana, Zagallo e Carlos Alberto Parreira, sempre foi valorizada. O país conquistou cinco Copas do Mundo com técnicos nacionais e desenvolveu um estilo único que encantou o mundo. Porém, as transformações no futebol global exigem uma atualização dessa identidade.
“A tradição da escola de treinadores do Brasil, o papel desempenhado, as novas rotinas de treinamento, o modo de tratamento dos atletas são alguns dos temas geralmente abordados quando o assunto é discutido. Porém, o fato é que o Brasil já formou diversos excelentes treinadores, com histórico vitorioso – não à toa é a Seleção que mais venceu a Copa do Mundo e sempre teve no seu comando técnicos formados no país.”
O desafio, portanto, não é abandonar a essência do futebol brasileiro, mas incorporar elementos modernos que permitam sua evolução. O sucesso dos técnicos estrangeiros no Brasil demonstra que é possível aliar organização tática e metodologias atualizadas com a criatividade e o talento individual que sempre caracterizaram o jogador brasileiro.
A pergunta que permanece é: quando surgirá uma nova geração de treinadores brasileiros capaz de sintetizar o melhor dos dois mundos? Enquanto a resposta não vem, os estrangeiros continuarão dominando as primeiras posições da Série A e colhendo os frutos de abordagens mais alinhadas às demandas do futebol moderno.
E você, acredita que a solução para o futebol brasileiro passa pela importação de técnicos ou pelo desenvolvimento de novos talentos nacionais? O debate está aberto e promete continuar enquanto a bola rola nos gramados do Brasil e do mundo.