Por que o Brasil não forma técnicos de elite como na Europa?

O Brasil é mundialmente reconhecido pela sua capacidade de revelar jogadores excepcionais. De Pelé a Neymar, o país produziu alguns dos maiores talentos que o futebol já viu. Paradoxalmente, quando o assunto é formação de treinadores, o cenário é completamente diferente. Enquanto nações europeias como Alemanha, Espanha, Itália e Portugal desenvolvem sistematicamente técnicos de classe mundial, o Brasil segue importando metodologias e, cada vez mais, profissionais estrangeiros para seus principais clubes e, possivelmente, para a seleção nacional.

O que explica esse abismo entre a produção de jogadores e treinadores no país pentacampeão mundial? Vamos analisar os fatores estruturais, culturais e econômicos que contribuem para esta realidade.

Formação deficiente e não-padronizada

O problema da licença

Na Europa, federações como UEFA e suas afiliadas nacionais desenvolveram um sistema rigoroso e padronizado de formação de treinadores:

  • Licenças progressivas: Do nível C ao Pro-License (UEFA Pro), com carga horária extensa e conteúdo padronizado
  • Estágios obrigatórios: Períodos práticos em clubes estruturados
  • Atualizações periódicas: Necessidade de reciclagem constante para manter as licenças

No Brasil, a implementação das licenças CBF só ganhou força nos últimos anos, com exigências muito recentes para que técnicos tenham formação específica. Até pouco tempo, apenas o diploma de Educação Física era suficiente para comandar equipes profissionais.

Conteúdo acadêmico desatualizado

As escolas de formação brasileiras frequentemente sofrem com:

  • Defasagem em relação às tendências táticas internacionais
  • Foco excessivo em aspectos físicos em detrimento de conhecimentos táticos avançados
  • Pouca ênfase em tecnologia e análise de dados
  • Escassa integração entre teoria acadêmica e prática em alto nível

Um ex-jogador europeu que busca se tornar treinador geralmente passa por 2-3 anos de formação intensiva antes de assumir uma equipe profissional. No Brasil, essa transição costuma ocorrer de maneira quase imediata, sem a devida preparação.

Cultura do imediatismo

Pressão por resultados imediatos

O Brasil possui um dos calendários mais congestionados do futebol mundial e uma das médias mais baixas de permanência de técnicos:

  • Técnicos brasileiros permanecem, em média, 4 meses no cargo
  • Na Premier League inglesa, a média ultrapassa 2 anos
  • Na Bundesliga alemã, 2,5 anos

Este cenário impede:

  • Desenvolvimento de projetos consistentes
  • Implementação gradual de metodologias
  • Aprendizado através de erros e acertos
  • Aprimoramento contínuo de habilidades gerenciais

Cultura da demissão

Enquanto na Europa um treinador geralmente recebe tempo para desenvolver seu trabalho, no Brasil prevalece a “cultura do resultado imediato”:

  • Sequência de 3-4 derrotas já coloca o treinador sob risco
  • Eliminações em competições costumam significar demissão sumária
  • Pressão da mídia e torcida por trocas constantes
  • Dirigentes que buscam decisões populares em vez de sustentáveis

Ausência de escolas filosóficas nacionais

Identidade técnica diluída

Países como Espanha (tiki-taka), Alemanha (gegenpressing), Itália (catenaccio modernizado) e Portugal (pragmatismo organizado) desenvolveram escolas táticas reconhecíveis. Estas filosofias são ensinadas desde as categorias de base até o nível profissional, criando uma identidade nacional.

O Brasil, que já teve o “futebol-arte” como marca registrada, perdeu sua identidade técnica nas últimas décadas. Hoje, não existe uma “escola brasileira” claramente definida que oriente a formação de treinadores.

Falta de centros de excelência

Na Europa, instituições como:

  • Coverciano (Itália)
  • DFB-Akademie (Alemanha)
  • Ciudad del Fútbol (Espanha)
  • St. George’s Park (Inglaterra)

Funcionam como verdadeiros laboratórios do futebol, onde técnicos em formação têm acesso a:

  • Infraestrutura de ponta
  • Intercâmbio com profissionais de elite
  • Pesquisas avançadas
  • Material didático atualizado constantemente

No Brasil, não existe um centro nacional equivalente para a formação de treinadores.

Fatores econômicos e estruturais

Desvalorização financeira

O salário médio de um treinador brasileiro em clubes nacionais é significativamente inferior ao praticado na Europa:

  • Técnico da Série A brasileira: R$ 300-500 mil mensais (excetuando grandes clubes)
  • Técnico da Premier League: equivalente a R$ 1,5-3 milhões mensais
  • Técnico da Bundesliga: equivalente a R$ 800 mil-1,5 milhão

Esta disparidade afeta:

  • Atratividade da carreira
  • Investimento em formação continuada
  • Necessidade de resultados rápidos para garantir empregabilidade
  • Êxodo de talentos para mercados mais valorizados

Infraestrutura e recursos

O desenvolvimento de treinadores modernos exige acesso a:

  • Tecnologias avançadas de análise de jogo
  • Equipes multidisciplinares completas
  • Centros de treinamento adequados
  • Orçamentos para inovação e desenvolvimento

A maioria dos clubes brasileiros não consegue oferecer esta estrutura, limitando o crescimento técnico dos treinadores locais.

O ciclo vicioso da importação

Valorização do estrangeiro

Nas últimas temporadas, observamos uma tendência crescente de contratação de técnicos europeus e argentinos para os principais clubes brasileiros:

  • Abel Ferreira (Palmeiras)
  • Jorge Sampaoli (passagens por Santos, Atlético-MG e Flamengo)
  • Jorge Jesus (Flamengo)
  • Juan Pablo Vojvoda (Fortaleza)

Este fenômeno, embora traga conhecimento internacional, cria um ciclo perverso:

  • Desvalorização do profissional local
  • Menor espaço para técnicos brasileiros em formação
  • Percepção de inferioridade da metodologia nacional
  • Adaptação de modelos sem contextualização adequada

Como reverter o cenário

Para que o Brasil volte a formar treinadores de nível internacional, seriam necessárias mudanças estruturais:

1. Reforma educacional

  • Modernização dos currículos de formação
  • Padronização nacional alinhada a padrões internacionais
  • Exigência progressiva de licenças para atuação profissional
  • Parcerias com centros de excelência europeus

2. Mudança cultural

  • Valorização de projetos de longo prazo
  • Educação de dirigentes, mídia e torcedores sobre processos de trabalho
  • Proteção contratual para desenvolvimento de projetos
  • Critérios técnicos, não emocionais, para avaliação de desempenho

3. Investimento em infraestrutura

  • Criação de um centro nacional de desenvolvimento de treinadores
  • Programas de intercâmbio internacional
  • Plataformas de compartilhamento de conhecimento
  • Investimento em pesquisa e inovação tática

4. Política de repatriação e aproveitamento

  • Programas para reintegrar ex-jogadores brasileiros com experiência internacional
  • Identificação e desenvolvimento de talentos nacionais promissores na área técnica
  • Espaço para treinadores jovens em formação
  • Valorização financeira competitiva

Conclusão

O abismo entre a capacidade brasileira de formar jogadores e técnicos não é fruto do acaso, mas resultado de décadas de negligência estrutural, cultural e educacional. Enquanto a Europa investiu sistematicamente na profissionalização da carreira de treinador, o Brasil manteve uma abordagem amadora e improvisada.

A solução passa necessariamente por uma revolução na forma como enxergamos a função do treinador. Não basta ser um ex-jogador carismático ou ter “sentimento” pelo clube – o futebol moderno exige conhecimento técnico, tático, físico, psicológico e tecnológico em níveis cada vez mais avançados.

Ironicamente, o país que ensinou ao mundo como jogar futebol agora precisa aprender com outros como formar aqueles que ensinam o jogo. O potencial existe – o Brasil tem tradição, paixão e talento humano abundantes. O que falta é organização, planejamento e, principalmente, paciência para construir uma nova geração de treinadores que possa devolver ao país o protagonismo técnico que já foi sua marca registrada.

Quando o Brasil compreender que formar um grande treinador é tão importante quanto revelar um craque, talvez possamos finalmente ver técnicos brasileiros disputando as principais competições europeias e liderando seleções de ponta – algo que, curiosamente, já acontece com profissionais de preparação física, análise de desempenho e fisioterapia formados no país.

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